Video-cartas de uma quarentena #1 • “No silêncio e na solitude passei a perceber meus pensamentos com mais clareza. Eles invadem sem pedir licença. Ficam. Passam. São como nuvens que cobrem o céu e depois desfazem. O fato é, existe um diálogo acontecendo aqui dentro. São várias vozes que conversam, cantarolam, se interrompem, são gentis, outras vezes severas. Às vezes aparecem com tanta força que me pego repetindo alto. Respondendo. Outras vezes falam através de criptografias. Percebi padrões. Vozes que martelam. Outras que resistem em ficar. Que distraem. Que cobram. Outro dia questionei se aquela voz era mesmo MINHA. E cheguei a conclusão de que não. Era de minha mãe. Outro dia flagrei uma de meu avô! Desde então tenho notado que as vozes que falam em mim não são minhas, exatamente. Carregam experiências, histórias, morais e conclusões de outras pessoas, familiares, professores, filmes, amigos.. Até que, finalmente, entendi que não existo como indivíduo. Sou múltipla. Não sou dona de mim. Faço parte de um ser maior. Sou porta-voz. O que penso é resultado de uma constante luta de forças entre várias vontades, ideias, projetos, memórias. São vozes que negociam, que se trombam, que se somam ou que guerreiam entre si. Perceber isso é libertador e emocionante. É lindo pensar que carrego vozes de familiares que, por sua vez, carregaram de seus familiares e que, portanto, converso com meus ancestrais. Outro dia silenciei vozes batidas, e apareceu algo novo. Um coro diferente que arrepiou a espinha. A quarentena tem me tornado uma pessoa mais atenciosa e curiosa com o que carrego. Depois de abrir este espaço mais generoso de escuta interna, passei a cultivar um sentimento de carinho e intimidade comigo e, ao mesmo tempo, de estranhamento. Isso tem me feito atravessar pontes, florestas densas, descobrir ossadas e tesouros. Como dizia Leminsky, “Isso de ser exatamente o que se é, vai nos levar além”. #lutadeforças
Vídeo-cartas de uma quarentena #2 • “No silêncio e na solitude, descobri o sabor dos alimentos. A experiência de comer antes era como acender uma luz fria, sem curvas e monocromática, como de uma lavanderia, e passou a ser como contemplar um espetáculo de fogos de artifício, um filme cheio de surpresas com começo, clímax e fim. Está sendo incrível aprender a saborear de verdade os alimentos. Estar presente. Prestar atenção, notar cada elemento na mistura. Como vão surgindo e como vão se transformando no mastigar. Meditar enquanto se come é uma das lições mais bonitas que essa quarentena me deu. Como num caça ao tesouro, de olhos fechados descobrir, na curva e no detalhe, a presença e personalidade dos alimentos.. chego a dar risada, sorrir, perguntar, conversar. Essa conversa tem ido longe e tenho desenvolvido um carinho pelos alimentos na mesa que nunca existiu. Isso tem feito do ritual de comer um momento sagrado, especial e muito bonito. Agradeço a todas as agricultoras e agricultores que por dias e meses cultivaram cada espécie dessa para estarem aqui nessa mesa hoje.” #fogosdeartificio
Vídeo-cartas de uma quarentena #3 • “Passear com o Aram nas ruas e praças me ensinou a admirar os detalhes da natureza que se destacam em meio ao caos urbano. Notei que estes detalhes no caminho me trazem de volta ao presente. Como um chamado. Me resgatam de pensamentos perdidos, no passado ou no futuro. São fontes de trégua da batalha diária. Momento de pausa. Respiro. Paz. Em meio a pandemia, passei a valorizar ainda mais estes momentos, para além da estética e pausa. Com o espectro da morte a cada esquina, acabei me defrontando implacavelmente com a vida. E por respeito à ela passei a me permitir fazer pausas mais longas, observar mais profundamente, desenrolar diálogos. Estar inteira. Sentir. Ouvir. Às vezes responder. Agradecer. Passei a interpretar estes sinais como pequenas oferendas. Fui aprendendo a estar cada vez mais atenta e observar o suficiente para receber-e-dá-las. Essa prática vem ganhando qualidade e diversidade, e tem me tornado uma pessoa mais tranquila, mais leve e mais feliz. Até que entendi que não sou eu que levo o Aram para passear. É ele quem me leva. Grata, Aram.” #oferendas
Vídeo-cartas de uma quarentena #4 • “Passei a habitar uma outra casa. A casa virou rua e o corpo virou casa. “Voltar pra casa” virou meu ritual de recolhimento, silêncio, observação e escuta. Passei a, finalmente, ME habitar. Aqui dentro venho descobrindo um mundo. Percebendo que alguns muros não são tão altos assim. E que outros são verdadeiras muralhas. Estar em mim, assim de pertinho, tem me ajudado a enxergar como o mundo se espelha aqui dentro. Assim como as marcas que eu tenho deixado nele. Tenho notado também como eu me trato. Como eu me cuido (ou não). Quão coerente (ou nao) sou comigo mesma. Esse corpo-casa tem sido, principalmente, um lugar de trégua. Conforto. Um templo. Mas as vezes de trabalho intenso ou experimentações. (Des)Construções. Vestir meu próprio corpo e despir a minha mente tem sido talvez a experiência mais radical que eu já vivi até agora. Como antropóloga viajante nunca imaginei que aprenderia tanto sobre o outro olhando cara a cara pra mim. Nunca imaginei que para se estar verdadeiramente presente lá fora era preciso estar tão dentro assim. Do avesso virei. Me perdi. Me encontrei. O fora arregalou em mim. Longe e dentro. [sem fim].” #corpocasa
You are light ♥️
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